Essa é
a história de Leal. Não era um garoto diferenciado, nem muito alto, nem um bom
atleta, nem um bom dançarino. Mas sempre achei que nele havia algo especial,
diferente dos demais. Sempre adorei seu cabelo castanho e um pouco comprimo, e
o jeito delicado que o desembaraçava. Eu ficava feliz em vê-lo, mesmo sem poder
ver seu rosto.
Eu o
acompanhava quando a aula terminava. Deixava entre nós uma pequena distância e
o seguia até sua casa. Nas manhãs, acordava bem cedo e fazia o mesmo enquanto
ele se caminhava até escola. Ele nunca me notou, mas eu não me importava.
No
começo do ultimo mês ele estava muito triste. Chorava muito e ninguém sabia o motivo.
Um dia um policial entrou na sala de aula e o levou para conversar com o diretor.
Eu resolvi fingir uma dor de cabeça para poder sair também. Cheguei o mais
próximo possível de onde eles estavam, o suficiente para ouvir a conversa.
Agora sua tristeza fazia sentido.
Na semana
seguinte seu rosto triste foi substituído por um rosto pálido e assustado.
Desde o dia do enterro de seu pai, ele havia ficado muito deprimido. Seus
amigos o apelidaram das coisas mais horríveis que eu jamais havia escutado.
Tudo porque ele perdeu seu sorriso, não conversava com ninguém e não tinha mais
vontade de fazer nada.
Tudo
que eu mais queria era que minha tarde e minha noite passassem o mais rápido
possível, assim finalmente o dia amanheceria e eu poderia vê-lo, acompanhar sua
caminhada até a escola e ter certeza de que nada o incomodaria. Na outra
semana, ao ficar sentado chorando durante a aula de educação física, um grupo
de jogadores do time da escola o cercou. Eles o xingaram, o agrediram e
rasgaram seu material. Foram surpreendidos por um garoto grande, conhecido por
ser o capitão do time. Mandou que todos parassem e estendeu seu braço. Ao
ajudar o pobre Leal a se levantar, o soltou, acertou um golpe em sua barriga e
cuspiu no seu rosto. Eu não aguentei, corri para longe e comecei a chorar.
Passado
aquele dia, mais uma vez a sala de aula fora visitada por um policial, que conduziu
aqueles brutamontes que chutaram e cuspiram em Leal para fora da classe. Eu
sabia que logo mais haveria justiça. Agora a sala com seis alunos a menos
estava mais confortável para mim. Porém, depois desse dia ninguém mais sorriu
na escola.
Escutavam-se
nos noticiários todos os dias sobre a história do adolescente que matou seus
amigos a facadas no peito, arrancou e esmagou seus corações e no dia seguinte se
matou quando estava sozinho. Mas as coisas não estavam como deveriam. Leal não
teve seu sorriso de volta. Eu não conseguia entender. Seu pai que fazia...
aquilo, não o incomodava mais. Aqueles idiotas da classe não estavam mais lá
para o maltratarem. Porque seu sorriso não voltou?
Não
podia entender mais nada. Todos agora o tratavam como um monstro, como alguém
perigoso. E não havia no mundo uma pessoa mais maravilhosa que Leal. Mas
ninguém conseguia ver essas qualidades, a sinceridade e a delicadeza de cada
detalhe de seu corpo e de seus atos. Uma coisa seria não ter amigos por estar
chateado, mas o que aconteceu foi diferente. Ninguém o queria por perto, todos
o odiavam.
Meus
dias ficaram mais tristes e meu mundo se tornou vazio. A escola havia sido
fechada depois do que aconteceu. Não era para ser assim, não era. Agora minhas manhãs, tardes e noites eram
cinzentas e sem graça. Duas semanas sem ver Leal foram uma eternidade. Depois
da cerimônia em homenagem aos trinta e dois alunos mortos, eu percorri toda a
quadra a procura de Leal, no meio de pais, professores e alunos. Finalmente o vi.
Trocamos olhares por alguns segundos. Sua boca abriu. Ele ia falar comigo, eu
sei que ia. Mas foi interrompido e levado por homens vestidos de branco.
Reparei que sua mãe chorava quieta, como se não quisesse ver seu filho ser
levado. Demorei a entender o que havia acontecido.
No dia
seguinte, quando finalmente consegui passar pelo corredor principal do
hospital, avistei o quarto número 122. Ele estaria lá, eu tinha certeza. Estava
difícil correr, pois minha sandália estava com um pouco de sangue ainda fresco.
Abri a porta e o vi amarrado na cama em uma camisa de força. Estava dormindo,
tinha um rosto angelical como se estivesse sonhando. De repente a porta foi
chutada e um homem de branco entrou. Durou alguns segundos.
Ainda
vivo, tendo pequenos espasmos no chão enquanto o sangue jorrava de sua
garganta, suas ultimas palavras soaram como uma piada para mim, porque a
resposta era óbvia. Por quê? Porque uma pessoa incapaz de perceber a graça de
Leal, não merece ter um coração, assim como seu pai, assim como seus amigos,
assim como todos desse hospital, que duvidaram de sua bondade.
Após
abrir seu peito e esmagar seu coração com minha sandália, percebi que Leal
estava acordado atrás de mim. Fiquei tão nervosa, mas sabia que esta seria a
hora certa para falar com ele pela primeira vez. Limpei um pouco de sangue de
meu rosto e me aproximei.
-Leal?
-Fique
longe de mim!
-Mas...
por quê?
-Foi
você que fez tudo aquilo?
-Eu... tentei
fazer por você... porque...
-Você é
um monstro!
-...
-O que
vai fazer agora? Me matar também?
-Não.
Acho que também não sou digna de tê-lo.
-Está
falando de mim?
-Não...
estou falando dele.
-Não
faça isso, por favor.
-Entenda
isso como um reconhecimento de que errei... aceite ele.
E
naquele dia, meu coração doeu pela última vez.
( Dan )
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