Eram exatamente
sete horas.
Daniela estava
no quarto, tapando os ouvidos com o travesseiro para não ouvir a briga lá fora.
Era a quarta vez no dia que seus pais discutiam aos gritos daquele jeito, e ela
não estranharia se ouvisse o barulho de um tapa. Até porque, de vez em quando,
sua mãe merecia, mesmo. Fora ela o gatilho daquela e de qualquer outra briga
que houvesse dentro daquela casa, com sua mania de aumentar os detalhes da
convivência da família e transformá-los em tragédias shakesperianas. À tragédia
real, contudo, ela não dava atenção alguma: sua filha.
Daniela nasceu
de uma gravidez difícil, seguida de um parto que não podia ser descrito por
expressão nenhuma além de “suplício”. Sua mãe quase morreu no processo, e
apenas por sorte a menina não foi natimorta – se dependesse da própria Daniela,
ela teria escolhido não ter sorte alguma. Cresceu ouvindo relatos de uma época
áurea na família tanto do pai quanto da mãe, e observando de muito perto a
desgraça em que ambas as famílias caíram após seu nascimento. Talvez por isso
caiu em depressão logo na infância, e jamais levantou-se para chacoalhar essa
mortalha; não demorou para que o transtorno obsessivo-compulsivo e a síndrome
do pânico se apoderassem de sua já tão frágil mente. Também era muito antissocial
e antipática, e não conseguia se relacionar com ninguém por um intervalo maior
que algumas horas.
A briga acabou
mais cedo que o esperado, e Daniela enfiou a cara no travesseiro, tapando os
olhos também. Queria chorar, mas se sua mãe entrasse no quarto e percebesse,
ela estaria com muitos problemas. É difícil ter depressão numa casa em que
chorar é expressamente proibido, mas ela conseguia. Mais uma vez, engoliu o
choro. Não teve tempo de se encontrar com seus pensamentos, porque sua mãe
irrompia no quarto, barulhenta, dizendo que o pai de Daniela lhe deixara
sozinha para cuidar das galinhas e que era trabalho da filha fazê-lo, porque
ela já estava cansada daquela vida completamente solitária, estava cansada de
ter que fazer tudo enquanto Daniela ficava no quarto o dia todo, estava cansada
de trabalhar do mesmo jeito todos os dias com todas aquelas dores que sentia
por causa dos seus problemas de coluna. Aproveitou para acrescentar que era tão
feliz quando estava solteira... E tinha se casado com o pai de Daniela para
dar-lhe uma vida digna, com uma família completa, mas tudo o que tinha era um
marido ingrato, uma filha estranha e malcriada e os dois cachorros, que
pareciam ser os únicos naquela casa que se importavam com ela.
Saiu do quarto e
Daniela levantou-se molemente, sentindo o ódio pulsar em suas veias, correndo
mais rápido que o sangue. Foi até a cozinha para pegar o milho das galinhas, e
sua mãe estava cortando carne. Porque tremia muito, por causa do ódio
incipiente que lhe fervia o sangue, derrubou a tigela de milho, e observou os
grãos tingirem o chão clinicamente branco de amarelo ouro enquanto ouvia a mãe
dizer que, além de tudo, ainda era incapaz de segurar uma tigela.
O ódio gritou
tão alto dentro de seu cérebro que Daniela perdeu completamente a noção do que
estava fazendo e deixou-se levar por ele, pulando sobre a mãe e lhe roubando a
faca para atacá-la com ela. Não se deu conta inicialmente da quantidade de
sangue que manchava o chão, porque sua mente perturbada não estava preocupada
com isso. Quando finalmente deu por si, parou sua mão no ar, ao caminho do
pescoço da mulher, e encarou-a. Sua mãe estava completamente desfigurada e suja
de sangue até os quadris; tinha os olhos fechados e muito provavelmente não
respirava, mas Daniela não atentou para isso. Então começou a chorar, mas não
de tristeza, e sim porque tinha muito a chorar, e o faria assim que lhe
deixassem. Tremia muito, talvez de raiva ou então de susto – mais provavelmente
de raiva. Sua mão fraquejou a e ela soltou a arma.
Quando a faca
tocou o chão, eram exatamente sete e dez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário