segunda-feira, 12 de março de 2012

La marseillaise


Eram exatamente sete horas.

Daniela estava no quarto, tapando os ouvidos com o travesseiro para não ouvir a briga lá fora. Era a quarta vez no dia que seus pais discutiam aos gritos daquele jeito, e ela não estranharia se ouvisse o barulho de um tapa. Até porque, de vez em quando, sua mãe merecia, mesmo. Fora ela o gatilho daquela e de qualquer outra briga que houvesse dentro daquela casa, com sua mania de aumentar os detalhes da convivência da família e transformá-los em tragédias shakesperianas. À tragédia real, contudo, ela não dava atenção alguma: sua filha.

Daniela nasceu de uma gravidez difícil, seguida de um parto que não podia ser descrito por expressão nenhuma além de “suplício”. Sua mãe quase morreu no processo, e apenas por sorte a menina não foi natimorta – se dependesse da própria Daniela, ela teria escolhido não ter sorte alguma. Cresceu ouvindo relatos de uma época áurea na família tanto do pai quanto da mãe, e observando de muito perto a desgraça em que ambas as famílias caíram após seu nascimento. Talvez por isso caiu em depressão logo na infância, e jamais levantou-se para chacoalhar essa mortalha; não demorou para que o transtorno obsessivo-compulsivo e a síndrome do pânico se apoderassem de sua já tão frágil mente. Também era muito antissocial e antipática, e não conseguia se relacionar com ninguém por um intervalo maior que algumas horas.

A briga acabou mais cedo que o esperado, e Daniela enfiou a cara no travesseiro, tapando os olhos também. Queria chorar, mas se sua mãe entrasse no quarto e percebesse, ela estaria com muitos problemas. É difícil ter depressão numa casa em que chorar é expressamente proibido, mas ela conseguia. Mais uma vez, engoliu o choro. Não teve tempo de se encontrar com seus pensamentos, porque sua mãe irrompia no quarto, barulhenta, dizendo que o pai de Daniela lhe deixara sozinha para cuidar das galinhas e que era trabalho da filha fazê-lo, porque ela já estava cansada daquela vida completamente solitária, estava cansada de ter que fazer tudo enquanto Daniela ficava no quarto o dia todo, estava cansada de trabalhar do mesmo jeito todos os dias com todas aquelas dores que sentia por causa dos seus problemas de coluna. Aproveitou para acrescentar que era tão feliz quando estava solteira... E tinha se casado com o pai de Daniela para dar-lhe uma vida digna, com uma família completa, mas tudo o que tinha era um marido ingrato, uma filha estranha e malcriada e os dois cachorros, que pareciam ser os únicos naquela casa que se importavam com ela.

Saiu do quarto e Daniela levantou-se molemente, sentindo o ódio pulsar em suas veias, correndo mais rápido que o sangue. Foi até a cozinha para pegar o milho das galinhas, e sua mãe estava cortando carne. Porque tremia muito, por causa do ódio incipiente que lhe fervia o sangue, derrubou a tigela de milho, e observou os grãos tingirem o chão clinicamente branco de amarelo ouro enquanto ouvia a mãe dizer que, além de tudo, ainda era incapaz de segurar uma tigela.

O ódio gritou tão alto dentro de seu cérebro que Daniela perdeu completamente a noção do que estava fazendo e deixou-se levar por ele, pulando sobre a mãe e lhe roubando a faca para atacá-la com ela. Não se deu conta inicialmente da quantidade de sangue que manchava o chão, porque sua mente perturbada não estava preocupada com isso. Quando finalmente deu por si, parou sua mão no ar, ao caminho do pescoço da mulher, e encarou-a. Sua mãe estava completamente desfigurada e suja de sangue até os quadris; tinha os olhos fechados e muito provavelmente não respirava, mas Daniela não atentou para isso. Então começou a chorar, mas não de tristeza, e sim porque tinha muito a chorar, e o faria assim que lhe deixassem. Tremia muito, talvez de raiva ou então de susto – mais provavelmente de raiva. Sua mão fraquejou a e ela soltou a arma.

Quando a faca tocou o chão, eram exatamente sete e dez.

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